segunda-feira, 18 de junho de 2007

Solidão Marcelo Rubens Paiva
Neuras de um solitário: falar sozinho, nunca desligar o computador, não comer comida na panela, mas preparar uma bandeja caprichada e comer em frente da tevê, despedindo-se do William Bonner, fazer a cama de manhã, mesmo que só ele durma nela à noite, fazer a barba e se arrumar, mesmo que a única pessoa que ele cumprimentará será o porteiro, e ouvir Billie Holiday no talo. Pode reparar, todo solitário ouve Billie Holiday. No talo.Armadilhas para se combater a solidão: deixar a tevê ligada num cômodo, conectar-se ao MSN, comprar uma luneta, morar perto de um café ou padaria ou posto de gasolina com loja de conveniência 24 horas, alugar temporadas inteiras de um sitcom e assisti-las sem parar, tomando sorvete do copo, e sair, ir ao cinema e teatro, nunca a um botequim, em que todos se divertem e têm amigos, o que além de aumentar a solidão, lhe dará a fama.Não conheço um paulista que tenha se ofendido com a provocação de Nelson Rodrigues, 'a pior solidão é a companhia de um paulista'. Atrás da expressão carrancuda, fechada, que aparenta pressa e mau humor (pura defesa), há uma figura simples, que gosta de interagir, prestativa, quase um bobo e que sorri quando se caem as máscaras. Nós, paulistanos, nunca deixamos de lado aquele jeito provinciano de sorrir à toa. Somos todos meio ingênuos, quase óbvios, quase inocentes.A companhia de um paulista da zona sul será acompanhada de um truta, ou de um 'chegado', porque mano que é mano anda em dupla. Não falarão gírias, mas dialeto. O tema será sempre o trânsito da M'Boi Mirim, a desigualdade social, a violência policial e as tretas com os manos de outra quebrada. E haverá no ar a utopia: 'O dia que os manos cruzarem a ponte...' Uma referência à Ponte João Dias, fronteira da injustiça social. Já a companhia de um paulista da zona leste vem com um sotaque italiano, belo, e uma fome de carboidrato. Tem muita faculdade por lá. Uma via expressa insana, a Radial. E, agora, uma classe média se enriquecendo. Bairros sem teatros, livrarias, e vida cultural de shopping. Como a zona norte.No fundo, a frase do Nelson Rodrigues é divertida, mas imprecisa. Porque a companhia de um paulista é imprevisível. Já a solidão de um carioca é mais triste do que a de um paulista. Não se imagina que um sujeito daquela cidade deslumbrante, em que as pessoas são informais, espontâneas e divertidas, possa sofrer de solidão. Triste não é só viver na solidão, mas saber que ninguém pode viver de ilusão (Tom Jobim). O paulistano não tem ilusões: é difícil viver na cidade, e a solidão é apenas mais um problema a ser resolvido.A solidão é um dos temas do filme Não por Acaso, lançamento imperdível da Fox e O2. Dois paulistanos, Pedro (Rodrigo Santoro) e Ênio (Leo Medeiros), como todo paulistano, vivem para o trabalho. O primeiro manufatura mesas de sinuca com uma precisão e acabamento que o destacam dos demais fabricantes, e conhece os truques do jogo, como as diferentes maneiras de se bater na bola branca, para determinar onde ela irá parar. O segundo é um engenheiro que controla o tráfego da cidade, dá ordem ao caótico trânsito a partir de uma sala de controle com monitores ligados a câmeras espalhadas por ruas e avenidas, anuncia emergências e abre e fecha os faróis, para o trânsito fluir. Mas um imprevisto, o mesmo atropelamento, muda completamente suas vidas metódicas, regradas. Não é por acaso que o longa de Philippe Barcinski se chama Não por Acaso. Porque o acaso nem sempre é por acaso. Causa uma transformação inesperada e arma encontros que modificam um estado inerte de solidão.Barcinski mostra uma São Paulo lotada mas deserta, se é que você me entende. Cada cidadão anda anônimo no seu carro, oculto pela pressa ou insufilm nos vidros, ou observa o mundo através de uma das janelas do seu condomínio. E a área de lazer que resta a um dos personagens é o Minhocão, que aos domingos fecha para os carros. Se um carioca assistir a esse filme, entenderá por que somos tão diferentes.Faz de Conta Que Tem Sol lá fora é a peça de Ivan Cabral, com Jerusa Franco e Nilton Bicudo (direção de Aline Meyer), no Satyros 1, que mostra como dois paulistanos, que moram no mesmo edifício e nunca se falaram, fazem para aplacar a solidão, observando o mundo pelas janelas, ouvindo repetidamente a mesma música. Ela deixa a porta do seu apê aberta, com medo da solidão. Ele um dia resolve entrar. Fingem que faz sol, quando na verdade lá fora tudo é tão assustador quanto dentro.O que mais aflige um solitário é imaginar que a cidade inteira se diverte, e ele, não, que todos têm alguém, e ele está só, que a paz está na vida familiar e na turma de amigos, e que ele, o solitário, jamais experimentará a sensação confortável de ter com quem desabafar, além do porteiro.O que aflige um solitário é imaginar que faz sol lá fora, e o frio encontrou a sua alma para se instalar. O que aflige um solitário paulistano é que tem alguma coisa acontecendo, e ele está perdendo. É daqueles que precisam dar cinco telefonemas e trocar e-mails com alguém que também não está fazendo nada, ou também sofre de amor, ou também pegou aquela gripe, para se certificar de que, apesar se sentir só, não é o único. Existe alguém auto-suficiente?Às vezes, você está rodeado de pessoas, e está só. Pode estar só no meio da multidão. Pode estar só no seu casamento, com os seus filhos. Até as desejadas por todos podem estar só. Marylin Monroe esteve só. Como Sylvia Plath. Como Virginia Woolf. Como Cyclone. Quem?Maria de Lourdes Castro Pontes, a Cyclone, uma estudante de 18 anos, amante de Oswald de Andrade. Sua história é contada na peça O Perfeito Cozinheiro das Almas Deste Mundo, de Jefferson Miranda (com Luiza Mariani no papel), no Sesc Paulista, baseada num diário coletivo escrito por Oswald e amigos, na garçonnière que mantinham no centro da cidade, antes da Semana Moderna de 22, em que tinham relações com a menina de 18 anos, amada por muitos, porém muito só. A solidão de Cyclone era a mais aguda, pois sabia que vivia num momento da história que não era o seu. Nasceu há quase um século antes do tempo.Pronto, indiquei alguns programas para você, solitário. Mexa-se. Fonte: O Estado de S. Paulo, 8 de junho de 2007

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